«O medo, o medo com a cabeça de hidra, que é generalizado em todos nós, é uma ressaca das formas inferiores de vida. Estamos divididos entre dois mundos, um, aquele de que emergimos, e o outro, aquele em direcção ao qual caminhamos. Este é o sentido mais profundo da palavra "humano": somos um elo, uma ponte, uma promessa. É em nós que o processo da vida está a ser levado a efeito. Temos uma tremenda responsabilidade, e é a gravidade disso que desperta o nosso medo. Sabemos que se não formos em frente, se não realizarmos o nosso ser potencial, recairemos, nos apagaremos, e arrastaremos o mundo connosco na queda. Levamos o Céu e o Inferno dentro de nós e toda a Criação está ao nosso alcance. Para alguns são perspectivas aterrorizantes. Mas desejaríamos que fosse diferente? Seriamos capazes de inventar um drama melhor? (...) Se fores capaz de ser um verme, serás também capaz de ser um Deus.»
Henry Miller
Rogo escutado a um coração
Não faças de mim um despreocupado
os meus irmãos trabalham nas produções ruidosas
mas eu tenho de ir aos mortos e aos esquecimentos
a mostrar a árvore o ramo e o raminho
onde despontou primeiro a primavera.
No silêncio e na esperança repousa a minha vida
que eu não seja um distraído mesmo que a festa ao longe
me chame toda a noite. Como louvarei
o sono e o despertar, os primeiros cantos e as últimas estrelas?
Tenho tanto que fazer — contemplar a árvore o ramo e o raminho
onde despontou primeiro a primavera
governar velhas nações desavindas no meu peito
deixar comida limpa aos animais da rua.
Não me deixes ser um despreocupado
os meus irmãos saíram para trabalhar em terra estranha
sou eu que tenho agora de amar os horizontes
fazer visitaçoes, traçar as Tuas marcas que salvam nas soleiras.
Não há hora de descanso para as minhas vigilâncias
deito-me e levanto-me nos turnos do temor.
Quem há-de pôr grinaldas nos círculos do fogo?
Quem há-de levar água à boca dos sedentos?
Não permitas que eu seja um despreocupado
correspondo a rostos pobres, entrego-me aos olhares
e só assim distingo, espelho e anuncio.
Grandes coisas se preparam mas os meus irmãos não vêem.
Agora tenho de ir a guardar as orações
a recordar a árvore o ramo e o raminho
onde despontou primeiro a primavera
Carlos Poças Falcão
SMOKE
Coreografia: Mats Ek
Intérpretes: Sylvie Guillem e Niklas Ek
Música: Arvo Part
"The smoke which comes from their clothes & mouths is what they say to each other." Mats Ek
1/3
2/3
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O mundo exterior existe como um actor num palco: está lá mas é outra coisa.
Fernando Pessoa
O português é capaz de tudo, logo que não lhe exijam que o seja. Somos um grande povo de heróis adiados. Partimos a cara a todos os ausentes, conquistamos de graça todas as mulheres sonhadas, e acordamos alegres, de manhã tarde, com a recordação colorida dos grandes feitos por cumprir. Cada um de nós tem um Quinto Império no bairro, e um auto-D.Sebastião em série fotográfica do Grandela. No meio disto (tudo), a República não acaba. Somos hoje um pingo de tinta seca da mão que escreveu Império da esquerda à direita da geografia. É difícil distinguir se o nosso passado é que é o nosso futuro, ou se o nosso futuro é que é o nosso passado. Cantamos o fado a sério no intervalo indefinido. O lirismo, diz-se, é a qualidade máxima da raça. Cada vez cantamos mais um fado. O Atlântico continua no seu lugar, até simbolicamente. E há sempre Império desde que haja Imperador.
Fernando Pessoa