Colega: não te descuides a pôr a render tudo o que fazes! Tem sempre à mão a pasta de arquivo, o livrinho de registos! Guarda os recibos! Pede factura! Faz pela vidinha! Cuidado com o escalão! Estica o teu currículo! Aproveita as ocasiões! Calcula as vantagens! Não te esqueças de esperteza alguma! – É assim que, cada vez mais, me parece ser a ideia que o Estado faz dos professores, dos funcionários e – mais genericamente – dos cidadãos. E que eles, conformadamente, alimentam, tomando para si esse jugo, essa tristeza. É o reino do “tem de ser”, do “andamos todos ao mesmo”... O “sistema” (político, económico, social, cultural), cada vez mais burocrático apesar das afirmações solenes em contrário, exige dos seus servos um insistente preito de vassalagem com declarações, certidões, autorizações, certificados, modelos, cartões, recibos, números, identificações. Tudo numa cinzenta dimensão de impessoalidade, em que as nossas vidas (profissionais e não só) são avaliadas espectralmente, como se num círculo do Hades já nos movêssemos. Lá nos dirigimos ciclicamente, com a pesadíssima papelada na mão, ao dia do juízo, no dia dos impostos, no dia da mudança de escalão, no dia do pedido mais que o dia do direito. Que ninguém esqueça as suas pequenas honras, as suas gloríolas, os seus esforços e pequenos méritos! Tudo lhe será contado na hora da dedução no IRS, na hora da contabilidade dos créditos, na hora dos ordenados e dos vencimentos! Alguém deu dinheiro para os pobres? Pois peça recibo, que isto de solidariedade não dispensa contas de mercearia. Alguém assistiu a uma conferência? Pois que não saia de lá sem o certificadozinho. Alguém publicou umas linhas numa remota revista? Pois não descanse enquanto não juntar fotocópias ao dossier curricular. O “sistema” o que mais ama é isso: recibos, certificados, fotocópias. Que importa o rosto que realmente nos assinala? Que importa o coração que realmente nos habita? E o pensamento que autenticamente nos pensa e nós pensamos, que importa? Que importa o espontâneo gesto, o nosso riso único, a nossa dádiva, a nossa irredutível existência sem cálculo, a nossa inexorável “condenação” à liberdade? Que importa a vida que nos vive e na qual somos o único e verdadeiro vivo? Oh, como tudo isto, que é profundamente tudo, parece não contar para quase nada! Corramos atrás das facturas, dos registos, das contagens, das contribuições! Corramos atrás dessas metáforas bancárias, dessas metonímias civis, dessas alegorias funcionárias. Por elas seremos julgados na consumação das pequenas vilezas desta desordem gigantesca do viver. Que mesquinho tribunal! Por que temer então ser condenado?
Carlos Poças Falcâo
20.3.09
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